Patricia Phelps Cisneros conversa com Fabio Cypriano da Folha sobre arte e o surgimento da sua coleção. Considerada a mais importante coleção de Arte Latino-americana, parte dela fica em exibição até 30 de janeiro na Pinacoteca de São Paulo. Conta com cerca de 70 peças entre pinturas, esculturas, objetos e desenhos, mostra o processo de passagem, desenvolvido pelo trabalho dos artistas, do plano pictórico para o espaço, na história da arte da Venezuela e do Brasil, entre 1947 e 1987. Apresenta uma oportunidade rara para o público brasileiro de ver obras fundamentais desse período ao mesmo tempo em que oferece a possibilidade de leituras comparativas e complementares.
FABIO CYPRIANO
DE SÃO PAULO - Folha online - Ilustrada
A colecionadora venezuelana Patricia Phelps Cisneros diz que possui 5.860.000 obras de arte, mas quando lembra que a afirmação estava sendo gravada, aproxima o aparelho da boca e diz "é brincadeira". Os números de seu acervo, no entanto, considerado o melhor de arte latino-americana, não são divulgados. Em parte, números podem não ser importante, pois o que ela salienta na entrevista a seguir é a responsabilidade do colecionismo.
Figura influente em museus como o MoMA, de Nova York, e a Tate, de Londres, Cisneros apresenta agora 80 trabalhos de sua coleção na mostra "Desenhar no Espaço", em cartaz até 30 de janeiro na Pinacoteca. Quando esteve em São Paulo para a abertura da exposição, no fim de novembro, ela falou à Folha, contando a história de sua coleção e suas maiores paixões, que são, por ordem de importância: sua família, deus, flamenco, comida e o Grande Núcleo, de Hélio Oiticica. Além de ótima colecionadora, como se percebe, Cisneros tem ótimo humor. Leia a seguir a íntegra da entrevista.
| Letícia Moreira/Folhapress |
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A colecionadora venezuelana Patricia Phelps Cisneros, que mostra parte de seu acervo em exposição em SP |
Folha - O que a levou a colecionar arte? Como sua coleção teve início?
Patricia Cisneros - Não começou como uma coleção, mas como uma senhora recém-casada que queria arrumar sua residência com certa estética. E essa estética tem sido coerente com minha coleção porque, e isso revela minha idade, eu cresci na Venezuela nos anos 1950 que, junto com o Brasil, teve uma modernismo extraordinário, havia obras públicas de [Jesús Rafael] Soto em várias partes. Para onde se olhava, havia modernismo, o modernismo estava em nosso sangue.
Então começamos a colecionar Gego, Salazar, sempre com obras abstratas. Depois, meu marido começou a viajar pela América Latina, eu o acompanhava, e a coleção deixou de ser local. Ele foi meu grande mentor, me ensinou a ter uma visão mais universal e, certamente, mais latinoamericanista da arte. Assim, o que me levou a ser colecionista foi gostar de ter coisas belas ao meu redor.
Mas agora, inclusive, tenho uma missão sobre a responsabilidade do colecionismo. Isso porque uma coisa é comprar uma obra e pronto. Outra é cuidar dela, assegurar que ela tenha condições de preservação corretas. As grande corporações, que possuem coleções, em geral não gostam de mim, porque eu digo "e o ar-condicionado, vocês o apagam nos fins de semana?" Essa mudança faz a obra sofrer. E se o escritório do presidente é ensolarado, e o sol chega a um quadro maravilhoso, ele o danifica. Essas corporações sequer têm curadores. Então, quando alguém se chama colecionador, o que mais ele faz além de comprar.
Eu já fui assim, comprava e achava tudo bonito, mas não sabia nada, eu tinha 20 anos. Até que um dia, me ligaram de uma revista europeia para saber sobre minha coleção e, palavra de honra, até então não tinha me dado conta que eu tinha uma coleção.
Quando foi isso?
Ah, faz tempo, em meados dos anos 80. Eu até catalogava as obras, mas não tinha consciência de ter uma coleção. Depois dessa ligação, ao prazer de colecionar se juntou a responsabilidade. Desde esse momento temos tido, sobretudo, o respeito ao artista, disso se trata. Então, temos conservadores, curadores, restauradores, tudo que se necessita para que uma obra esteja bem conservada. E educadores, que é a missão fundamental da Fundação.
A Fundação foi criada há exatos 40 anos?
Sim, começamos naquele momento e sempre tivemos uma dupla missão, dentro da América do Sul, onde sempre se focou nos aspectos educativos dos programas que temos, porque temos muitos. A coleção é uma pequena parte divertida. Mais que divertida, porque sempre pensamos na educação como a única forma, eu creio, de superar a pobreza. E a liberdade, não de expressão, que também é importante, mas eu gosto de enfatizar a liberdade de pensamento. E não quero generalizar, mas há muitas escolas na América Latina que não tem liberdade de pensamento e os professores precisam respeitar a opinião dos alunos frente a uma obra de arte. Usando a arte como meio de expressão e de respeito à ideia dos demais se pode fazer muito e nosso grão de areia é ajudar nesse sentido.
Em quantos países a Fundação trabalha?
Desde o México até o Polo Sul, numa base militar da Argentina, onde temos um treinamento de professores. Cremos também na preservação de nosso acervo histórico, o que muitos governos não fazem. Assim, temos também uma coleção de arte da Amazônia venezuelana, há 30 anos colecionamos obras etnográficas e há dez essa coleção circula pela Europa. Os europeus respeitam muito a filosofia e a religião do índio, não as olham com superioridade. Já mostramos 60 obras de nossa coleção em um museu na Lapônia, na Finlândia, e com o trabalho educativa na Argentina, nossa ação é de polo a polo. A coleção indígena já foi vista por sete milhões de pessoas!
E porque, com tantas obras, a Fundação Cisneros não tem um espaço expositivo?
Quantos habitantes da Lapônia iriam à Venezuela ver a coleção? Certamente poucos. Então nós vamos a eles. Nunca...hum, acho que não posso dizer nunca. Às vezes entramos em alguns espaços, como esse do Instituto de Arte Contemporânea, onde há a exposição de Mira Schendel, que sim, me dá vontade. Creio que em algum momento vamos acabar tendo algum lugar, mas por enquanto gosto de trabalhar com as universidades e elas têm muitos museus. E como muitos museus na América Latina não têm muitas obras, nós as emprestamos com muito gosto. Mesmo se um museu não tem muitas condições técnicas, que dariam um ataque de coração em nosso conservador, nós emprestamos peças que não necessitam de cuidados especiais.
Mas nossa missão é educativa e, quando começamos a coleção, a arte de nosso continente não era do interesse de muitos museus, mas agora isso começa a mudar. E nós temos a reputação de sermos sérios, organizados, temos mesmo o staff de um museu, com 20 pessoas, o que é o que tem qualquer museu mediano, fora os serviços terceirizados de advocacia, contabilidade...
Agora, também tem uma questão de vaidade...
Ah, a senhora não quer um Museu Patricia Cisneros?
Isso mesmo, não quero. O mais importante é poder fazer circular 300 obras, em um só ano, por muitos museus.
A senhora falou que museus têm tido mais interesse em arte latino-americana e sua presença, tanto no Conselho do MoMA como no da Tate ajudou muito nessa percepção.
Agradeço sua deferência, mas não sou eu. No MoMA, a figura central é o Glenn Lowry. Desde o dia em que ele entrou, em 1995, deixou muito claro que ele queria romper a visão norte-americana e europeia que predominava no museu e expandir em novas direções. Então, ele deu um apoio incondicional à arte latino-americana. Ele veio ao Brasil muitas vezes, mais de oito creio.
E na Tate, Nicholas Serota também tem esse papel, certo?
Sim, Nic, também. Então, depende muito do diretor. Para mim é um grande prazer trabalhar com Lowry. E Paulo Herkenhoff, que foi meu grande mentor em arte, porque ele sabia minha estética e ele me ensinou o que se passou no Brasil, nos anos 1950 e 60. Ele foi o primeiro curador de América Latina no MoMA e abriu o caminho. E o MoMA foi o primeiro museu a ter um curador para arte latino-americana e foi o primeiro museu no exterior a ter um Willys de Castro, o que me dá muito prazer! Depois veio Luis Perez-Oramas, que colabora muito, conhece bem o Brasil e trabalhou conosco por uns dez anos.
E qual a presença na arte brasileira em sua coleção?
Há dois anos, Gabriel [Perez-Barreiro] começou a trabalhar conosco. Ele fala português, fez a 6ª Bienal do Mercosul [2007, em Porto Alegre] e agora estamos olhando mais para a arte contemporânea. Estou aprendendo muito com o Gabriel. Eu ainda adoro vir ao Brasil, as pessoas são muito amáveis. Ontem, jantei com amigos e o Gilberto Chateaubriand veio do Rio só para nos encontrar e eu o conheço desde 1980.
O Chateaubriand sempre se lembra que a primeira obra da coleção dele, que foi um Pancetti. Qual foi a sua?
A primeira foi de um espanhol que se chamava Manuel Rivera [1928 1995], e é feita de uma tela metálica, muita abstrata, muito geométrica, e nela já se vê minha estética. Mas o primeiro trabalho que comprei mesmo foi com 13 anos, quando ganhei um dinheiro, e era um livro sobre arte etrusca, que esse foi meu primeiro contato com arte, pois em 1953 havia muito poucos livros de arte na Venezuela.
Chateaubriand também tem um modo particular de aquisição. Ele prefere comprar nos ateliês dos artistas, por exemplo. Qual é o seu?
Para mim, um dos grandes prazeres do mundo é estar no sofá velho que o Waltércio Caldas tem no estúdio dele e ficar conversando com ele. Quando viajo com meu marido pela América do Sul, sempre busco saber quais artistas posso visitar. Senão, ler e ver. Gabriel também é fundamental, se não posso ver as obras, ele mostra slides, eu confiava também em Paulo e com eles discutir se tal obra encaixa na coleção e se preço está bom (risos).
E você também compra em feiras de arte, que estão muito em moda, ou você vai a Basel, por exemplo?
Não vou, eu não gosto. Não quero criticar, há gente que gosta, mas não é meu caso.
E a senhora visita bienais?
Acabo de estar na Bienal de Pontevedra, na Espanha, que achei incrível e acho que fui a única colecionadora a estar lá. Mas isso depende muito, do meu marido, da minha família, quando eu posso, eu vou.
E as Bienais de São Paulo?
Já vi muitas, a do Paulo [Herkenhoff], claro. Mas sempre venho durante, como agora, não na abertura.
E essa, a senhora gostou?
Gostei muito de algumas peças. Aprendi muito, ela me pareceu muito interessante. Sempre é necessário ver e ver e ver, e se não gostar, é preciso continuar vendo. Mas também há muitas peças que não gostei. Mas adorei ver o bólide "Cara de Cavalo", do Gilberto [Chateaubriand] e eu disse a ele que ia roubá-lo (risos). Também gostei muito do colombiano Mateo López, ele é muito bom. Na Bienal é possível saber o que se passa no mundo.
Mas eu fiquei triste também porque havia uma obra com telas penduradas que me lembrou o "Grande Núcleo", do Oiticica, e eu chorei muito quando achei que essa, que é minha obra favorita no mundo inteiro, com seus planos amarelos, tinha se perdido. Ela é minha paixão. Para mim, há minha família, deus, flamenco, comida e depois o Grande Núcleo (risos)
Voltando à sua presença nos museus internacionais, os diretores podem ser importantes, mas a senhora compra muita obra para eles...
Sim, mas é o apoio deles que tem me dado força, assim como o de meu marido. Eu tenho orgulho de muitas coisas. Como membro do comitê diretor do MoMA, onde cheguei muito jovem, percebi que os curadores do museu eram muito preparados e inteligentes, mas não sabiam nada da América do Sul, porque as escolas norte-americanas não ensinam. O curador de arquitetura, por exemplo, só conhecia Niemeyer e mais nada. Agora em 2015 vão organizar uma mostra de dois pisos só sobre arquitetura contemporânea latino-americana, ou seja, foi uma longa estrada.
Longa porque lá atrás eu decidi criar um fundo de viagem para curadores e, todo ano, cada departamento podia mandar um membro para conhecer algum país da América do Sul e insisti, em contrato, que eles não eram obrigados a mostrar nada do que tinham visto, só tinham que conhecer. O que passou? A primeira a se beneficiar da bolsa foi Paola Antonelli e ela veio ao Brasil, onde conheceu dois rapazes que faziam móveis e se chamam Campanas. Na volta, em 1998, ela organizou uma pequena mostra deles, no Project Series, nós compramos uma peça e o resto é história. Isso me deixa muito feliz.
Outra coisa que acabamos de criar no MoMA é um bibliotecário especialista em América Latina.
E isso é pago pela Fundação Cisneros?
Sim, isso é uma doação para um fim específico. Mas eu também queria falar de um assunto que é pouco abordado que é o direito de autor. Quando fizemos nosso primeiro site, o que já faz muito tempo, acho que em 2000, não me lembro bem, mas lembro não tínhamos o presidente que temos [Chávez].
Enfim, contatamos os artistas para conseguir suas permissões e, mesmo aqui no Brasil, muitos não sabiam que havia algo chamado direito de autor e nós aconselhamos a muito, inclusive dando apoio legal, a saberem como fazer isso. E também fiquei muito feliz em poder dizer isso aos artistas.
E isso mostra que o fundamental é o respeito aos artistas. Ontem, eu comentava que tenho uma casa na Republica Dominicana, onde há furacões, sabe. Ela tem um belo jardim e muitas paredes e não existe nada nessas paredes. Alguns amigos aconselham colocar obras de artistas jovens, mas para mim não interessa se uma obra vale U$ 50 ou U$ 500 mil, é uma obra de um artista, saiu de sua alma. Por isso, sou brava com os colecionadores.
A Fundação é muito discreta em relação a quantas obras possui, tentei descobrir por vários meios e não consegui...
Temos 5.860.000 obras. Ai, está gravando. É brincadeira!! (risos).
A senhora gostaria de dizer mais alguma coisa?
(silêncio) Sim. Nós consideramos que estamos cuidando das obras, quase todas passaram pela nossa casa, mas o que digo é que estamos cuidando delas porque elas pertencem ao mundo.