RETROSPECTIVA

Granato Performer
São Paulo 14 de abril de 2008
Por Carlos 
von Schmidt 


Na noite do lançamento de Ivald Granato Art Performance, da coleção Portfólio Brasil, pela JJCarolEditora, quinta-feira, 3 na Livraria Cultura do Shopping Villa Lobos, depois de ver o livro, falei comigo mesmo: “Será que o Granato conheceu Flávio de Carvalho? Foi o precursor da performance no Brasil. Pioneiro. Flávio morreu em 1973 . Granato veio para São Paulo em 1970.



Em 1956, “traje tropical ou,“traje de verão”, foi a terceira performance de Flávio.Na época não o conhecia pessoalmente. Mas, vi a performance. Estava na porta dos Diários Associados, no prédio em que funcionava o MASP e o MAM quando Flávio, alto, quase 2 metros de altura, forte, passou vestindo camisa de náilon transparente, com aberturas nas axilas, mangas bufantes, saiote de brim branco, pregueado, tipo minissaia na altura da coxa, meia arrastão, sandálias, chapéu de pano branco, com abas, na mão. 



Há uma foto da revista O Cruzeiro que mostra Flávio, a multidão que o seguia, a maioria suando de terno e gravata, em frente aos Diários. Estou ao lado de Hideo Onaga. Será que Granato o conheceu? 





Nos anos 60, Flavio e eu deixávamos nossos carros na mesma garagem na Nestor Pestana. Isso e uma volumosa autobiografia nos aproximaram. Entre Flávio e Granato existe um ponto comum. O exibicionismo. A vontade de provocar, de chocar o bom burguês, conservador e reacionário. 





Outro ponto é que ambos nasceram no estado do Rio. Flávio em Amparo da Barra Mansa, em 1899.Granato em Campos, em 1947.




À medida que folhei o livro, encontrei nas fotos de página inteira ou meia página, imagens de tempos e de espaços que vivi. 

A capa de Jacqueline Caroll, informativa e dinâmica, já me remeteu às performances. Graças a seu projeto gráfico e pesquisa, as performances realizadas por Granato de 1974 a 2006, mostram esses trinta e dois anos de atuações. Pode-se dizer que nessas três décadas Granato fez da performance meio de expressão pessoal. Criou o jeito, o estilo Granato de fazer performance. Às vezes genial, outras, nem tanto. 


Para mim Granato descobriu a performance no dia em que fez de seu casamento em Campos, onde viveu até 1966, um happening movimentadíssimo e badalado. Não foi através de teorias que chegou à performance. Foi através da prática. Do fazer. Do viver. A Safada de Copacabana, performance considerada a primeira, é de 1964. Não há na arte brasileira maior deboche. E era apenas o começo. 
De Campos foi para o Rio. Passou rapidamente pela Escola de Belas Artes. Do Rio veio para São Paulo.


Lembro-me de vê-lo em um sábado, no início dos anos 70, na Augusta, próximo da Rua Estados Unidospanfletando. Ia à frente de uma bandinha mambembe, dessas que tocam nas esquinas no fim de ano. Estava a pouco em São Paulo. Usava camiseta, bermudas e tamancos. O repertório da banda era mínimo. Para remediar atacava então de “Feliz Ano Novo que tudo se realize no ano que vai nascer, com muito dinheiro no bolso, saúde pra dar e vender”.


Granato acompanhava a música dançando passos que lembravam valsa. Era impossível ignorá-lo, às 11 da manhã de um sábado, em um dia ensolarado, de abril, maio na Augusta. Naquela altura, ouvir a música de fim de ano era muito estranho. Irreal. Dalí teria adorado. Surrealismo puro. Do melhor.





Logo depois conheci Granato. Em 1975, diretor do Museu de Arte Brasileira, o convidei a expor. Foi sua primeira exposição em museu. Mostra grande. Expôs tudo que tinha produzido até então. Pintura, desenho, gravura, escultura, objeto e pequenos embrulhos amarrados com barbantes. Alguns foram pendurados acima da porta da entrada da Fundação.

Na noite do vernissage fez uma performance. Chamou-a de XL 250, menção a moto que usou para atravessar a tela. 

Quando me disse que não conseguiu fazê-la no MAM do Rio, disse-lhe que se assinasse um termo de responsabilidade eximindo o museu de possíveis quebras e danos, não haveria problema. E acrescentei: “Ficaria espetacular e emocionante atravessar a tela em chamas. Você topa? Sem hesitar respondeu: topo.” 

Depois disso, fiquei sem jeito de pedir que assinasse qualquer documento. Não assinou nada. Fez por conta e risco. 



Os habituais fofoqueiros foram correndo informar Lucia e Roberto Pinto de Souza, diretores da FAAP, sobre os planos loucos de Granato e meus. Fui chamada à Rua Ceará, à casa rosada da diretoria. Conversamos. Falei da nossa intenção. Lucia só disse: “olha lá professor, veja o que vai fazer”. Assumi a responsabilidade. Para isso tinha carta branca. Fomos em frente. E a performance aconteceu.



Jaqueta de Couro preto, calça de brim preta, capacete e luvas pretas, Granato subiu na moto e acelerou. Joguei gasolina na tela e taquei fogo. Granato acelerou e avançou. Alunos, professores, curiosos ficaram olhando embasbacados quando Granato atravessou a tela em chamas. Respirei fundo, aliviado ao vê-lo descer da moto são e salvo. A tela no chão, queimando. Minutos depois cheirando a queimado Granato recebia os convidados, dava entrevistas.

Dias depois me mostrou uma tela que pintara. “A cadeira do diretor”. Era a minha cadeira. A pintura está na coleção de Gilberto Chateaubriand. No MAM do Rio. 





Um ano depois, na Feira de Poesia & Arte, em 9 de novembro de 76 no Teatro Municipal de São Paulo, Granato apresentou o Urubu Eletrônico. Seu sucesso foi ofuscado por um desconhecido poeta carioca que sem mais aquela urinou no meio do palco. 





Foi o maior rebu. Interferi para que o mijão não fosse preso. Não foi. No dia seguinte os jornais só falavam do xixi no Municipal. Da performance inusitada, única, inesperada e inesquecível.





O final dos anos 70 foi surpreendente. 78 um ano marcante. Ano da Primeira e última Bienal Latino-Americana, cujo tema era, Mitos e Magia. Contestada por um happening-performance, Mitos Vadios, idealizado e coordenado por Granato





Aconteceu em um domingo, 5 de novembro. Em um estacionamento vazio da Unipark, no número 2918, quase na Rua Estados Unidos. Por coincidência em frente ao local em que vi Granato e a bandinha mambembe anos atrás.





Naquele domingo estávamos em campos opostos. Eu herdara a curadoria da Bienal-Latino-Americana depois que os idealizadores de Mitos e Magia após muita discussão e briga se afastaram da Bienal. 





Ao dizer aos diretores da Bienal que iria ver Mitos Vadios, fui veemente desaconselhado. Não dei à mínima. Fui! Imagine se ia deixar de ver Granato travestido de Ciccillo Matarazzo? Hélio Oiticica, Aguilar fazendo às suas? 





Ainda bem que fui. Hoje posso falar do happening-performance pois estive lá, vi, participei. Sou testemunha ocular de um evento que durou um dia, mas que do ponto de vista histórico e artístico foi muito mais significativo e importante do que a Bienal dos Mitos e Magia, que morreu de morte matada e que ajudei a enterrar. 





Sobre Mitos Vadios há poucos textos e muita desinformação. Há textos que dizem que se realizou nas ruas de São Paulo e foi coisa de Hélio Oiticica. Não foi! Granato é o pai da criança. Realizou-se no estacionamento da Unipark e não nas ruas, nem em “um terreno baldio da Augusta”.





No momento em que cheguei fui recebido por Granato/Ciccillo. Chapéu na cabeça, charuto na mão. Fazendo os costumeiros salamaleques dos cartolas, recebeu-me alegre e feliz. Hélio Oiticica em cima do muro, cabeleira feminina, óculos de motoqueiro, sunga apertada realçando o sexo,falava e mexia a língua como se estivesse fazendo sexo oral. Às vezes reforçava o deboche sacudindo o sexo.



Aguilar/samurai gritava banzai, banzai, arigatô, enquanto investia com uma espada contra bonecos de papel. Duelamos por minutos. Ele com a espada de verdade e eu com uma espada imaginária. Avançava gritando banzai, banzai. Esgrimindo minha espada imaginaria respondia ohayo samaurai-san, domo, sushisashimi.

Ubirajara Ribeiro oferecia espingardas para quem quisesse fazer tiro ao alvo. Reproduziam telas famosas. Atirei na Mona Lisa. Errei. Ninguém acertava. As armas estavam desreguladas. 

Ana Maria Maiolino colocou sobre uma mesa pequenos sacos com feijão e arroz. Amarrados. CláudioTozzi também amarrou carteiras escolares e uma lousa. Ambos aproveitavam Mitos Vazios para protestar contra a fome, contra o ensino precário e a comercialização escolar. Havia muito mais. Porém, ficarei por aqui. 

Quando deixei Mitos Vazios lamentei que não houvesse outras performances contestadoras. A força, a vitalidade, a dinâmica, a criatividade de Mitos Vazios deixava Mitos e Magia no chinelo.





Em 1979 fui curador da 15ª Bienal Internacional de São Paulo. A esquerda, aqui e no exterior boicotava a Bienal. Dinheiro não havia. A Fundação Bienal estava à zero. Fiz a Bienal dos Premiados. Trouxe obras dos artistas premiados nas 14 bienais. Convidei também artistas do Brasil.Granato foi um deles.

Nas três salas que ocupou contou a sua história através de pintura e de performances. A exposição realizada na FAAP deu-lhe material para uma retrospectiva. 



Nos anos 70, 80, 90 e 2000 vi inúmeras performances de Granato. Nessas performances, chapéus, bonés, gorros, perucas, óculos de motoqueiro e escuros, máscaras, nu feminino, leia-se Lenira, banhos de tintas, telas, pintura, botas, sapatos e tênis, roupas das mais sofisticadas às mais bregas, fazem parte da imagem e da ação do performer. Imagens várias, múltiplas.





Dalí, outro performer famoso dizia que não era possível fazer performance de terno e gravata. É preciso vestir o “uniforme de artista” para fazê-la. Granato sabe disso. Veste.





Em Art Performance da JJCarol, tudo que escrevi acima ganha mais força. É aquela historia de que uma imagem vale mil palavras. Vale!



O livro presta homenagem à Loris Machado, fotógrafa precocemente desaparecida. Suas fotos são vitais. Sem elas, muito do que Granato fez, não teria registro. E Ivald Granato Art Performance não seria o que é. 


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MITOS VADIOS - 1978
Por: Jacob Klintowitz




Era um domingo, 5 de novembro de 1978, quando finalmente aconteceu o muito anunciado “Mitos Vadios” (criação, controle de qualidade e coordenação de Ivald Granato, estacionamento da Unipark, rua Augusta, 2918). Tratava-se de um grande happening que pretendia contestar a 1a. e última Bienal Latino-Americana e o seu tema, “Mitos e Magia”. Em que se constituiu o episódio?

O episódio se compôs da presença de alguns artistas que se “manifestaram”, alguns espectadores, na sua maioria absoluta, jornalistas, marchands e figurantes habituais das inaugurações. Os artistas principais foram Ivald Granato, Hélio Oiticica, Claudio Tozzi, Ana Maria Maiolino, José Roberto Aguilar, Antonio Manuel, Júlio Plaza, Olney Kruse (mandou só a obra), Regina Vater, Portilhos e Ubirajara Ribeiro. Os dois últimos, surrealistícamente, também participaram da Bienal de São Paulo. E o que disseram e propuseram estes artistas?

Hélio Oiticica, por seus títulos, a principal presença, fantasiou-se de sunga, sapatos prateados estilo Boris Karlof, blusão cor-de-rosa, rosto maquiadíssimo e peruca feminina. Depois, desfilou entre o pequeno público, fez trejeitos com a língua (imagino que fosse uma paródia erótica) e, com a ajuda das mãos, sacudiu os órgãos genitais para o público. Após esta contundente crítica social subiu num pequeno muro, montou à cavaleiro e ficou à disposição para novas opiniões sobre a arte e o seu circuito, enquanto continuava, em ritmo mais acelerado, a fazer movimentos com a língua.

José Roberto Aguilar, com uma espada japonesa reproduziu a feroz “luta do samurai”, quando investiu contra bonecos apelidados de Omissão Cultural, Bom Gosto, Pacote Cultural e Crítica Colonizada. Curiosamente, Aguilar é o artista que fazia videocassete com equipamento importado e que raramente os apresentava ao público, uma vez que não existiam locais apropriados, já que o Brasil não produzia estes equipamentos.

Júlio Plaza distribuiu pequenos papéis com slogans contra a arte, o circuito de arte e a crítica de arte. A marchande Mônica Filgueiras vibrou com os slogans, especialmente o sobre a crítica de arte e me perguntou: e este – a crítica de arte é o preservativo da arte – o que você acha? O que respondi, seu curioso? Que eu prefiro julgar pelo conjunto da obra.
Ana Maria Maiolino colocou numa pequena mesa um saco de feijão e outro de arroz, amarrou-os com uma fita preta e chamou-os de “Monumento à Fome”. E, como extravasa criatividade, aproveitou um pedaço de parede para pendurar rolos de papel higiênico de cores diferentes, jornais e uma grossa folha de papel. Ácido comentário alusivo aos hábitos de higiene da humanidade.

Ubirajara Ribeiro escolheu cinco famosas obras de arte, imprimiu-as e fez com ela tiro ao alvo. Desta maneira, o público poderia destruir as imagens. Desmistificando a arte (é claro que a Mona Lisa estava entre as cinco) num gesto que se repete ad nauseans, há várias décadas, quando Marcel Duchamp pintou bigodes numa reprodução da Mona Lisa. Ubirajara acrescentou a este gesto, os “alvos” do americano Jaspers Johns.


Ivald Granato, fiel à sua liderança, fez uma performance estelar para afirmar que o seu nome não era Ciccilo Matarazzo, fundador da Bienal de São Paulo, do Museu de Arte Moderna e do Museu de Arte Contemporânea. O que nos espantou e chocou gravemente, pois tínhamos a esperança de que ele fosse o próprio Ciccilo Matarazzo.
Antonio Manuel, também, presente, felizmente não ficou nu, não botou ovos, nem se sentou num ninho, performances anteriores que o tornaram justamente famoso, entre nós. Isto foi o principal. Outros artistas, enfim, com menor talento dramático, tiveram atuação menos destacada.

Quanto à questão do mito… parece que não foi desta vez que Jung, Cassirer, Jean Chevalier, Alain Gheerbrant, Mircea Eliade, receberão uma contribuição mais eficaz. Quanto à critica à Bienal de São Paulo, pareceu-me interessante: como poderia a Bienal de São Paulo concorrer com a expressividade ideológica de Hélio Oiticica? E, quanto ao próprio mérito intrínseco do acontecimento, caberá ao tempo estabelecer a justa valoração.
Este texto procura resgatar do limbo esta história que se desmanchou no ar.

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