para a Folha de SP - 18.07.2010
Ferreira Gullar foi questionado sobre o fundamento do vanguardismo nas artes plásticas. Qual fator o fez manter-se só neste campo?
POR QUE o radicalismo de vanguarda, que surgiu com o movimento "dada", por volta de 1915, atravessou o século 20 e até hoje se mantém como tendência predominante nas artes plásticas? Formulei essa pergunta há alguns anos sem conseguir respondê-la satisfatoriamente. Como se sabe, o movimento "dada", que teve como figuras principais Marcel Duchamp e Tristan Tzara -sem falar em Kurt Schwitters, Hans Arp e muitos outros-, caracterizou-se por um radicalismo que se voltava contra toda e qualquer busca de coerência ou princípios no processo de criação artística. Se é verdade que o cubismo pôs fim à linguagem pictórica que nascera no Renascimento, o dadaísmo, ao contrário dos movimentos derivados daquele, tinha por lema a liberdade sem limites e a negação de tudo o que se considerasse arte. Era a antiarte, cujo ícone maior foi o urinol que Duchamp expôs em 1917. Se, paralelamente, surgiram outros movimentos artísticos, alguns, aliás, de caráter construtivo, foi o cadaísmo, em sua expressão mais irreverente, que se impôs no curso do século 20.
Minha pergunta implicava outra questão: se os movimentos de vanguarda se manifestaram não apenas nas artes plásticas, mas também na poesia, no romance, na música, no teatro, por que só naquelas se manteve dominante até hoje, enquanto as outras artes, depois de absorverem inovações vanguardistas, retornaram, enriquecidas, a seu leito natural?
Por exemplo, a poesia dadaísta chegou, após a "Ursonate", de Schwitters, a poemas que, em lugar de palavras, usavam traços, sinais abstratos. O caso extremo do experimentalismo na literatura foi o "Finnegans Wake", de James Joyce.
Felizmente, a literatura de ficção não o tomou como exemplo a seguir, como as artes plásticas o fizeram com o urinol de Marcel Duchamp. Se isso houvesse ocorrido, não teríamos hoje as obras de Borges, Faulkner, Clarice Lispector etc. Sem exagero, a literatura ter-se-ia tornado indecifrável e ilegível.
Diante disso, questionei o fundamento desse vanguardismo que só se manteve nas artes plásticas. Qual fator o fez manter-se apenas neste campo, e não nos outros? Deduzi eu que, se fosse uma necessidade da época, teria se mantido em todas as outras artes. Esse me parecia um argumento lógico, mas não me satisfazia, mesmo porque a vanguarda, em qualquer campo que se manifestou, nascera de fatores históricos identificáveis. A pergunta permaneceu, portanto, sem resposta, até que, quase por acaso, julgo tê-la encontrado. Não pensava nesse problema, quando observei que, no passado, não havia exposições de arte, mesmo porque ainda não se inventara o quadro de cavalete: o artista pintava afrescos nos muros dos mosteiros e igrejas e, depois, nas paredes dos palácios dos nobres e das mansões dos burgueses. Como o número de paredes era limitado, foi preciso surgir o quadro de cavalete para nascer o colecionador de arte, que passou a ir ao ateliê do artista e ali comprava a tela que lhe agradasse. O artista não expunha suas obras. Só no século 19 criaram-se os salões de arte, onde passou a expor. Distribuíam-se prêmios que, por consequência, determinavam o valor das obras no incipiente mercado de arte. E aí surgiram as galerias e os marchands.
Expor obras é um fenômeno relativamente recente na história da arte. Da Vinci, Rafael, Ticiano não expunham suas obras e isso influía no resultado do que criavam. No século 20, surgiram as grandes mostras internacionais, como a Bienal de Veneza, a de São Paulo e outros certames que se tornaram o espaço onde a arte acontece: um depende do outro. Essas exposições internacionais é que garantiram a sobrevida da vanguarda, estimulando o artista a produzir obras que "aconteceriam" ali. Ele trabalha para grandes mostras e necessita impactar o espectador, ao contrário do pintor do passado, preocupado em criar obras permanentes, que dele exigiam dedicação e apuro técnico.
Creio ser essa uma das razões por que a chamada arte contemporânea não elabora uma linguagem, não requer domínio técnico, já que o artista não busca a permanência e, sim, antes de tudo, expor e expor-se. Daí o improviso: as instalações, os "happenings", as performances.
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