sexta-feira, setembro 10, 2010

ARTE E LITERATURA, REGISTRO E EMBATE

Por Rita Alves - Historiadora, Crítica Literária, poeta. Gestora de Patrimônio Histórico e Cultural, colabora com a família Orlando Villas Bôas na preservação do acervo do indigenista.

"...o formato BIENAL já nasce ultrapassado por si mesmo. Sob a égide de um tema limitador, inibe expressões espontâneas, colocando limites autoritários e mercadológicos. É preciso dar espaço para as várias manifestações, expressões dos mais variados tipos de arte, representações diversas..."

As primeiras relações entre as duas formas de expressão aparecem nas ilustrações feitas em obras literárias no século XIX, quando surgiram os ilustradores de obras clássicas como A Divina Comédia, Don Quixote ou as Fábulas de La Fontaine. Gustave Doré figura como principal referência. Não alterou a função da obra, elucidou imagens presentes no corpo da literatura, nos moldes dos significados que a época histórica permitiu. Salvador Dalí ilustrou o mesmo romance quixotesco e, através da visão surreal e do pensamento fragmentário que permeou a virada do século, registrou as mudanças na forma de construir – desconstruir – o pensamento. Quixote se atualiza pelas mãos da arte, reveste-se de subjetivismo, tal qual a época anunciada por Dalí em sua criação.

Antonio Henrique Amaral, mais recentemente, compõe o livro “Resmungos”, de Ferreira Gullar, dando ao livro não apenas imagens deslocadas do contexto, mas serão as ilustrações quem darão o ritmo ao conjunto de crônicas do poeta. O ilustrador se vale de mais de uma forma técnica – aquarela, xilogravura, acrílico, colagens – para colidir propositadamente com os resmungos de Ferreira Gullar.

Um diálogo imbricado, necessário, no qual a língua estanca frente ao universo criador do artista e no qual a arte se estabelece como extensão da palavra.

Antero de Quental, em 1865, para falar em nossa língua, produz um dos mais importantes documentos que pede definitivamente a quebra da estética conservadora da literatura, através da carta panfletária “Bom Senso e Bom Gosto”, chamada de Questão Coimbrã, em resposta a Castilho, que criticava o novo caminho modernista dos poetas portugueses, segundo Antero uma crítica "à independência irreverente de escritores que entendem fazer por si o seu caminho, sem pedirem licença aos mestres, mas consultando só o seu trabalho e a sua consciência". Neste grupo modernista esteve Almada Negreiros, rompendo as formas estéticas da pintura realista, criador das antológicas capas da revista Orpheu, que alardeiria em apenas duas edições de pouco mais de 400 exemplares, o modernismo em nossa língua portuguesa e protagonista da primeira ‘performance’ de que se tem notícia, vestido de operário para se apresentar numa conferência.

Aqui no Brasil este trabalho ficou por conta da turma do Mário de Andrade, Bandeira e Oswald, unidos em causa – e efeito – aos artistas plásticos e músicos de sua geração. Todos contra os ‘sapos parnasianos’...

Mais recentemente Haroldo de Campos, Décio Pignatari e ainda Arnaldo Antunes têm construído essa trama complexa de unir imagem e palavra em forma de poema. Relacionando o sentido e a forma para ampliar o movimento do olhar, expandindo a possibilidade de devaneio do leitor/expectador.

A poesia tem se convertido em objeto estético. Para o poema o suporte já não precisa mais ser a página de um livro. Para Octávio paz, “A poesia concreta é uma vanguarda no sentido de arte que busca a ruptura”, mesmo movimento que se manifesta as artes plásticas por volta dos anos 50/60.

Atualmente não é possível definir a expressão poética por meio de um único estilo ou formato. Cabe tudo, todas as maneiras, como já prenunciava um dos precursores do modernismo português, Fernando Pessoa, pela voz de Álvaro de Campos; “Sentir tudo de todas as maneiras”.

O concretismo não está superado, estabeleceu-se como um dos estilos de expressão poética, assim como a arte de vanguarda. Cultura é processo constante, indefinidamente alimentada por ações individuais ou coletivas, mas especialmente por aquelas que provocam rupturas em moldes ultrapassados, atos que em si já contém a fórmula do novo. Sem conceitos pre estabelecidos.

Por este motivo o formato BIENAL já nasce ultrapassado por si mesmo. Sob a égide de um tema limitador, inibe expressões espontâneas, colocando limites autoritários e mercadológicos. É preciso dar espaço para as várias manifestações, expressões dos mais variados tipos de arte, representações diversas, como é diverso o ambiente criador brasileiro, sem anunciados preconceitos, como no caso da arte de rua, agregada posterior e contraditoriamente a atitude excludente inicial. É historicamente comprovado que a arte ao ser excluida se fortalece, por isso, é uma atitude absolutamente inocua a de colocar a margem segmentos significativos da expressão artística.

Mitos Vadios, segunda edição de uma manifestação idealizada por Ivald Granato, alarga o conceito de modelos pre estabelecidos, ganha importância na medida em que não propõe formatos, ganhando características próprias exatamente no processo de sua feitura, agregando ideias, permitindo quaisquer tipos de criação artística – performance, teatro, dança, poesia, artes plásticas - objetiva ou subjetiva, tornando-se assim, a própria manifestação, um objeto de arte – articulada coletivamente.