Faz-se necessário dizer, diante de tantas incompreensões de leigos sobre o meu trabalho, que este meu texto é, exclusivamente, para esclarecer esta fase de minha obra. Desejo prestar a minha homenagem aos que, na cidade do Salvador, nele acreditou. A eles dedico este texto.
Será necessário um ligeiro retrospecto. Na década de trinta dominavam em Salvador os artistas acadêmicos, na maioria, professores da Escola de Belas Artes. Alguns, os mais conhecidos e importantes na época, foram estudar em Paris e na Itália. No retorno, diziam-se impressionistas, que foi uma linguagem revolucionária surgida na segunda metade do século XIX. Nos anos trinta do século XX, já existiam os Nabis, os Fauves, o Abstracionismo, o Cubismo, o Expressionismo, o Futurismo, o movimento Dada, o Surrealismo, para somente citar algumas das novas linguagens que não foram por eles absorvidas.
Em fevereiro de 1922, acontece em São Paulo a Semana da Arte Moderna, movimento liderado por Oswald de Andrade, levado a cena no Teatro Municipal de São Paulo, onde a cada dia um artista apresentava sua tendência de cultura e arte. O movimento nasceu exclusivamente para exaltar culturalmente a cidade de São Paulo, apesar de participarem deles artistas nordestinos e cariocas, como Vicente do Rego Monteiro e Di Cavalcanti. Um pouco mais tarde em Recife, Cícero Dias assume o Surrealismo. Porém, a meu ver, este movimento assume uma característica muito importante para a arte e a cultura brasileira, devido à abrangência que tomou em todo o país.
O movimento começou e foi tomando corpo devido a que vários de seus artistas participantes estudavam na Europa ou muito para lá viajavam. Isso facilitou verificarem o grande movimento renovador das artes no princípio do século XX e absorverem as várias linguagens. O mais importante é que a temática usada na absorção das linguagens era transfigurada e tinha forte conotação nacionalista. Não foram simples imitadores.
O movimento começou a decair quando no Brasil começou a penetrar a arte abstrata. Mas em compensação, e ainda na década de 20, começaram a surgir os literatos nordestinos e logo após os pintores tentando obter uma identidade nacional para a nossa arte. Em 1932, volta de Paris o pintor baiano José Tertuliano Guimarães. Ele, apesar de não absorver nenhuma das novas linguagens contemporâneas da época, conseguiu compreender a pintura de Cézanne que muito o influenciou e, com isso, foi o primeiro a dar um passo adiante do que aqui era chamado de impressionismo. José Guimarães também inovou realizando pela primeira vez trabalhos recriados sobre a cultura afro-baiana, que ilustraram o número 4 da Revista SEIVA, de maio de 1939, todo ele dedicado ao negro. Esta diferença, e o rompimento com os procedimentos anteriores, lhe conferem a maior importância nas artes plásticas baianas. Assim ele se torna o primeiro artista a começar a diminuir a defasagem entre a arte anacrônica praticada na Bahia e as novas linguagens.
O modernismo começou a surgir em Salvador no meio da década de quarenta com a primeira geração de artistas plásticos modernos da Bahia. Portanto vinte anos depois da Semana de Arte Moderna de 22, que também começou com vinte anos de atraso. Enquanto tudo isso acontecia, pouco ou nada sabíamos do que acontecia na arte contemporânea da época. Daí a importância dos meios de comunicação, principalmente os jornais e revistas que começavam a publicar reportagens, textos de críticos de arte, e a divulgarem as novas linguagens. Atualmente, e infelizmente, na maioria dos jornais brasileiros, foram eliminadas as colunas de crítica de arte.
Na década de cinqüenta, a Escola de Belas Artes, fundada em 1877, seguia os padrões da Escola de Belas Artes de Paris. O que se ensinava a partir do modelo clássico eram as técnicas e as cadeiras teóricas de arte. Os professores falavam que a escola não fazia artistas. O que eu acho inteiramente certo. Somente quem tem talento, quem recebe o carisma dado pelo Divino Espírito Santo, consegue, com o aprendizado das técnicas, expressar o que vai na sua mente e em sua alma - naturalmente com muito estudo teórico e atualização nas linguagens contemporâneas. Com a posse destes elementos, pode-se conseguir ser um artista. Agora, o reconhecimento de um bom artista atualizado é trabalho da crítica de arte.
O contato com estudantes de arte de outros estados, em congressos e no que naquele tempo se chamava "embaixadas", o começo da introdução da arte moderna na cidade, realizada por artistas de fora da escola, a entrada da EBA na Universidade Federal da Bahia, a realização de concursos para professores foram, entre outros, fatores que contribuíram para a introdução, não tranqüila, da arte moderna na escola. Pessoalmente, além destes fatores, o que me influenciou a seguir a temática da arte e cultura popular do Nordeste transfigurada e adotando uma linguagem contemporânea foi a cadeira de Estudos Brasileiros, a leitura sobre os movimentos messiânicos e de autores brasileiros com esta temática.
Formei-me em Pintura pela nossa Escola de Belas Artes em 1957, quando começava o surgimento da segunda geração de artistas plásticos modernos da Bahia. Apesar da ruptura da primeira, a posterior encontrou ainda muitas dificuldades. No ano anterior já havia conhecido, e participava de atividades artísticas e culturais juntamente com Alberico Motta, Ângelo Roberto Mascarenhas de Andrade, Carlos Anísio Melhor, Florisvaldo Mattos, Fernando da Rocha Peres, Fernando Rocha, Frederico José de Souza Castro, Glauber de Andrade Rocha, José Julio de Calasans Neto, José Turisco, José da Silva Dultra, João Carlos Teixeira Gomes, João Eurico Matta, Julia Conceição Fonseca Santos, Lina Gadelha, Nemessio Salles e Paulo Gil de Andrade Soares, componentes da hoje chamada "Geração MAPA".
Estes jovens de então deram uma grande contribuição para a implantação da arte moderna na Bahia em todas as linguagens artísticas, e os remanescentes continuam atualizados e produzindo até hoje. Eles tiveram a fortuna de participar do maior e mais fecundo período cultural da Bahia durante o reitorado do Dr. Edgard Santos.
Como disse, desde 1957, influenciado por uma cadeira, hoje extinta, chamada "Estudos Brasileiros", comecei a elaborar o conteúdo da minha pintura. Esta cadeira dava uma visão geral do Brasil, não com profundidade, mas abrangendo todos os campos de nossa cultura. O catedrático era o psiquiatra e poeta Hélio Simões. Ele dava a aula inicial e poucas outras, mas durante todo o ano letivo as aulas eram proferidas por Carlos Eduardo da Rocha e Cid Teixeira. Pertencente a esta cadeira e em anexo, havia um pequeno museu onde constavam alguns objetos de artesanato do Nordeste, de antropologia, de etnologia, fotografias, santos barrocos, urnas funerárias indígenas, arcos, flechas, objetos em fibra, objetos de cerâmica e uma coleção de ex-votos. Daí surgiu a minha paixão.
Só para dar um exemplo da riqueza do Nordeste, o Brasil possui cinco regiões geográficas com três trajes típicos nacionais, o Vaqueiro, a Baiana e o Gaúcho. Afortunadamente a Bahia possui dois deles.
Talvez possa falar um pouco e, resumidamente, do reitorado do Dr. Edgard Santos, simplesmente por tê-lo vivido. Foi certamente o grande momento da arte e da cultura na Bahia. Foi um período de grande efervescência cultural e uma referência da Bahia na cultura brasileira e também internacional. Tenho que avisar não ser um saudosista, caso contrário não estaria fazendo arte digital, produzindo INFORGRAVURAS. Porém tenho saudades. Existe uma grande diferença em ter saudades e em ser saudosista. Mas para se ter uma compreensão do que ocorreu, primeiramente acho que devo falar da infra-estrutura que foi implantada no âmbito da Universidade Federal da Bahia e também do Governo do Estado da Bahia, com o Teatro Castro Alves e o Museu de Arte Moderna.
O projeto inicial do teatro foi do arquiteto Alcides da Rocha Miranda, um dos maiores arquitetos brasileiros, e compunha-se de dois blocos e um "foyer". Um dos blocos destinava-se ao ensino do teatro e o outro a representações teatrais. O argumento em favor da mudança para um novo projeto foi que o primeiro era muito complexo e a sua construção iria demorar muito. O atual é de autoria do arquiteto José Bina Fonyat e do engenheiro Umberto Lemos Lopes, que aproveitaram somente o "foyer" que já estava construído.
Vítima de um incêndio no fim do governo Antônio Balbino, o pagamento do seguro foi suficiente apenas para reconstrução da estrutura, ficando assim o TCA carente de equipamentos para o seu funcionamento.
Neste espaço começou a funcionar provisoriamente, no Governo Juracy Magalhães, o Museu de Arte Moderna da Bahia, que deveria possuir posteriormente uma sede própria. Após a conclusão da Avenida de Contorno e a restauração do Solar do Unhão, o MAM se muda para lá, também provisoriamente, porque naquele espaço deveria ser implantado o Museu de Arte Popular.
O MAM prestou um grande serviço às artes plásticas baianas. Começou mostrando os artistas abstratos, completamente desconhecidos em Salvador. Depois realizou exposições de grandes artistas nacionais e internacionais, exposições didáticas, a apresentação dos grandes artistas que haviam sido expostos na Bienal de São Paulo e um grande programa votado para os jovens artistas. No seu amplo palco foi construída uma arquibancada e levadas a cena pelos alunos da Escola de Teatro peças memoráveis como "A ópera dos três tostões" de Bertolt Brecht com música de Kurt Weill, tocada na época por um conjunto dos Seminários de Música, e "Calígula" de Albert Camus.
Foram inauguradas as Escolas de Teatro, Dança e os Seminários de Música, que mais tarde se transformariam na Escola de Música, e houve a inclusão da Escola de Belas Artes na Universidade Federal da Bahia.
O fantástico era a integração entre estas escolas, que sempre realizavam projetos em conjunto. Formou-se uma excelente orquestra onde foram incluídos músicos estrangeiros, e os concertos eram na Reitoria. Foi apresentado ao público o que havia de mais atual na música internacional, como aulas teóricas sobre o Dodecafonismo e concertos dodecafônicos, principalmente dos compositores Theodor Adorno e Arnold Schömberg e concertos clássicos. Ao mesmo tempo eram dadas aulas para jovens instrumentistas que afluíam de todo o país. A orquestra da Universidade Federal da Bahia apresentou pela primeira vez, e completa, "Carmina Burana", canções e poemas medievais musicados por Carl Orff. E também apresentou pela primeira vez mundialmente o "Octeto de Metais" de Paul Himdemith.
A Escola de Teatro recebeu inúmeros professores e artistas que trabalhavam ao lado dos jovens atores para lhes transmitir a experiência. Na escola, além da leitura de peças havia todas as cadeiras inerentes à formação profissional. Lecionou uma professora, cantora lírica, que ensinava a impostar a voz - o ator em cena projetava a voz, não gritava. Além de grandes encenações de peças clássicas e fundamentais para o ensino, dava-se muita importância aos autores brasileiros que iniciaram o nosso teatro. A Escola de Teatro obteve por doação, se não me engano da Ford Foundation, o primeiro ciclorama do Brasil. Um grande avanço na época devido a sua nova tecnologia.
Por sua vez a Escola de Dança mostrou a dança moderna, também por nós desconhecida naquela época. Todos esses movimentos eram para a formação de jovens artistas e a nossa geração, hoje chamada de "Geração MAPA", foi muito prestigiada em seus projetos e praticamente todos começaram aí sua vida profissional em suas respectivas áreas. Não falei dos nomes de nenhum artista ou professor, para evitar os costumeiros esquecimentos e procurei resumir ao que pude.
Durante o período escolar, já participava de salões e pintava ao ar livre. No final de meu curso, fui o primeiro aluno a fazer uma exposição individual na Escola de Belas Artes, mostrando todos os meus trabalhos escolares e os realizados fora da Escola. No ano seguinte expus na Galeria Domus. Em 1959, outra exposição na Pequena Galeria da Biblioteca Pública, e, em 1960, no Diretório Acadêmico da EBA. Neste mesmo ano, Mario Cravo, eu e Calasans Neto fizemos uma exposição na Galeria Macunaíma, no Rio. Então não parei mais. Graças a Deus, com saúde, aos 82 anos, continuo trabalho diariamente.
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