Por Claudio Leal para Terra Magazine
O conselho consultivo do MAM (Museu de Arte Moderna) de São Paulo rejeitou a doação de 14 obras do pintor e escultor Arcangelo Ianelli (1922-2009), um dos mais importantes e valorizados artistas plásticos brasileiros. Ianelli doou, em testamento, cerca de 170 obras representativas de sua trajetória para o acervo de 16 museus nacionais e estrangeiros. O museu paulista foi o único a rejeitar a oferta e surpreendeu os filhos do pintor, Kátia e Rubens.
"Tinha redundância em relação ao que a gente já tem do Ianelli", argumenta o curador do MAM, Felipe Chaimovich, em conversa com Terra Magazine. Apenas duas das 14 peças foram consideradas como não-redundantes pelo conselho formado por Annateresa Fabris, Luisa Duarte e Lauro Cavalcanti. A recusa também se fundamenta na ausência de recursos para pagar o imposto de transmissão das obras. "Não tinha nada previsto em termos do nosso plano anual", acrescenta Chaimovich.
Na carta enviada à família, em 24 de novembro de 2010, o curador não mencionou as justificativas. "O Conselho Consultivo de Artes do Museu de Arte Moderna, em sua última reunião, posicionou-se contrariamente à entrada dessas obras no acervo do museu. Assim sendo, entendemos por bem recusar as mesmas", informa, secamente, o documento.
"Houve rejeição ao artista", diz família
Depois de ser informada sobre os fundamentos do veto, Kátia Ianelli consultou o advogado da família e soube que os museus estaduais estão isentos do imposto de transmissão, o que favoreceu a Pinacoteca de São Paulo e o Masp. Ela contesta, mais energicamente, a tese da "redundância". "A nossa primeira preocupação é ter, por impresso, todas as obras que cada museu possui. Na primeira carta da proposta de doação, eu fazia referência a esse cuidado: nós iríamos contemplar os museus com fases que eles não tivessem, com trabalhos inéditos", relata Kátia.
A filha do pintor enumera as novidades para o acervo: "O MAM não tem nenhuma escultura do meu pai. Estavam propostas duas esculturas e mais uma escultura em madeira. Não tem nenhum pastel. Estavam propostos vários pastéis. Nenhuma transição e nenhuma arte figurativa. Eles não tinham nada dessas fases e dessas técnicas, como escultura de mármore, relevo pintado, que foi o último segmento da obra do artista, com 30 exemplares - e um deles estava indo pro MAM. Tudo que foi proposto era inédito. Se nada disso era contribuição, acho que eles não queriam mesmo a contribuição do artista, e não das obras".
A presidente do MAM e uma das principais acionistas do Itaú, Milú Villela, não retornou ao telefonema da reportagem. Em 20 de dezembro de 2010, ela recebeu uma carta dos filhos de Ianelli, na qual se lastima a recusa e se ressalta "a trajetória do artista nessa entidade", bem como a "história profissional, reconhecidamente destacada no panorama da arte moderna do Brasil". Arcangelo Ianelli integrou o conselho do MAM e ajudou a criar a biblioteca Paulo Mendes de Almeida. Por considerá-lo um dos seus museus favoritos, ele estimulava outros artistas a doarem suas obras para fortalecer o acervo.
"A gente entende que um museu deve saber o que é relevante. Parece que o MAM ficou sem memória e esquece um artista importante, que teve seu momento na arte brasileira", critica o artista plástico Rubens Ianelli. "Existe uma memória seletiva e um ponto de vista pessoal. Não é uma visão mais abrangente, mais aberta, sem tendências. É preciso ter essa história", reforça o filho.
O exemplo do MAM não foi seguido por outras instituições, que reagiram com entusiasmo ao testamento de Ianelli: o Museu Afro Brasil, a Pinacoteca, o Mab/Faap, o MAC (USP) e o Masp, em São Paulo; o Museu Nacional Belas Artes e o MAC de Niterói, no Rio de Janeiro; o Museu Inimá de Paula, em Belo Horizonte; o Museu Oscar Niemeyer (MON), em Curitiba; e o Margs, em Porto Alegre.
No exterior, o Malba e o Museu de Belas Artes, na Argentina, o Museu do México e o Museu de Arte Moderna da Colômbia. "Emanoel Araújo, diretor do Afro Brasil, vibrou com a notícia e foi o primeiro a incorporar as obras, em março de 2010", conta Kátia. O MAM-RJ ainda não se posicionou sobre a oferta.
Ferreira Gullar: "Estou perplexo"
O poeta e crítico de arte Ferreira Gullar, 80 anos, revela "perplexidade" com a decisão do museu. "A princípio, me parece um pouco estranho. Sem examinar, sem conhecer as razões, é difícil que uma instituição se negue a aceitar uma doação de um artista da importância do Ianelli. É, de fato, surpreendente. Eu era amigo do Ianelli, admirava a obra, sem dúvida eu lamento isso. É uma coisa estranha... Só digo a você que estou perplexo, perplexo, não estou entendendo nada".
Ao ser informado sobre as justificativas do museu, Ferreira Gullar reforça a estranheza. "Nenhuma instituição se nega a aceitar as obras de um artista da importância do Ianelli, porque isso enriquece o acervo. É estranho. O museu deve ter lá suas razões, mas, olhando assim de longe, eu confesso que estou surpreendido".
Com sentimento idêntico, o museólogo e ex-curador do Masp, Fábio Magalhães, destaca a importância artística de Ianelli. "Seguramente, seu papel histórico está crescendo com o tempo. Ele é um artista que ultrapassou as fronteiras do Brasil, passou as fronteiras internacionais. É indiscutível. Há depoimentos críticos sobre isso. Eu me surpreendo. Estou criando o Museu de Arte Contemporânea de Sorocaba (SP) e solicitei à família que doasse algumas obras, porque ainda não existia quando ele fez o testamento. Temos interesse em receber as obras de Ianelli", enfatiza.
Magalhães avalia que os museus podem se equivocar nas suas escolhas. Fundado em 1931, o Whitney Museum of American Art foi criado a partir de uma coleção de arte americana rejeitada pelo MoMA (The Museum of Modern Art), de Nova Iorque. "Depois, ele voltou atrás e hoje tem uma coleção americana enorme. Os museus também se equivocam e, muitas vezes, isso fica claro num pequeno período de tempo. É humano, as pessoas se equivocam", afirma o crítico. "Sei que a Kátia Ianelli é muito atenciosa nessas coisas. Não acredito que ela não tenha visto as obras existentes para fazer uma doação criteriosa. A única coisa que posso ficar é surpreso".
O diplomata Gilberto Chateaubriand, dono de uma das maiores coleções privadas de arte brasileira, cedida em comodato ao MAM do Rio de Janeiro, prefere não opinar sobre o assunto, por não ter acompanhado de perto. Ele apenas relata que os museus internacionais costumam acolher essas doações, "desde que tenham disponibilidade física e interesse cultural". "Mas é o Ianelli, meu Deus", diz.
O testamento
"A gente não sabia da existência do testamento", relembra Rubens Ianelli. "Ele já tinha uma listinha. A doação era um consenso aqui em casa". Em conversas com os filhos, o pintor manifestava a vontade de doar as obras mais representativas para alguns museus brasileiros e internacionais, num esforço de permanência artística. O trabalho de catalogação, com o rastreamento de quadros e esculturas, já dura oito anos.
Após a morte de Ianelli, Kátia iniciou a seleção, amparando-se nas velhas indicações do pai. Rubens cuidou do encaminhamento das obras para os museus. Cada instituição recebeu uma pasta com a ficha catalográfica.
Em março de 2011, o Mon de Curitiba realizou a primeira mostra dos 16 quadros doados por Ianelli (contava com apenas três obras dele no acervo). E exemplares da fase figurativa agora se encontram na Pinacoteca de São Paulo. A partir dos anos 60, Ianelli se dedicou ao abstracionismo informal e chegou, na década 70, à abstração geométrica, com retângulos e quadrados interpenetrados.
No mercado, suas obras têm valorização crescente. Em agosto de 2009, num leilão realizado no centro de convenções B'Nai B'Rith, em São Paulo, os lances iniciais de dois de seus quadros foram de R$ 200 mil e R$ 150 mil.
"Com o MAM, ele tinha uma relação diferente, porque participou desde o começo, criou a biblioteca que não existia e fez a primeira retrospectiva lá", recorda-se Rubens. O destino das 14 obras rejeitadas depende da Justiça e ainda não está definido. Um gesto raro de doação segue suspenso no ar, sem moldura.